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AS NOVAS FAMÍLIAS E A LIBERDADE DE CONTRATAR



A família, que tradicionalmente serviu mais à satisfação dos interesses econômicos e subordinou-se a uma formatação definida pelo Estado, tem se curvado à concepção eudemonista, assumindo novos contornos e proporcionando aos seus membros a expressão da sua identidade, busca pela felicidade individual e autonomia de seus integrantes para que possam viver como bem quiserem.

O Estado sempre interferiu no Direto de Família, no intuito declarado de preservar o que entende ser melhor ao indivíduo e à sociedade e, mesmo nas hipóteses em que admite a liberdade de escolha, como por exemplo, opção pelo regime de bens ou reconhecimento de novos modelos familiares, ainda assim limita esta liberdade, deixando salvaguardar muitos direitos patrimoniais e personalíssimos.

Todavia, a história tem mostrado que a intervenção estatal excessiva nas famílias e nas relações íntimas, nem sempre foi acertada ou, pelo menos, precisou ser revista para adaptar-se às transformações sociais. Basta observar alguns institutos familiares hoje normalizados, mas outrora inaceitáveis: o divórcio, as famílias recompostas, a união e adoção homoafetiva, que já foram considerados atentados ao instituto da família.


O Direito de Família muda de tempos e tempos e algumas construções familiares não são desejadas pela sociedade em determinado momento histórico, todavia, é questionável a competência do Estado para estabelecer as regras de convivência ou limitar a autonomia da vontade no espaço privado que é a família, posto que deveria pertencer exclusivamente ao indivíduos o poder de decidir qual forma de viver e conviver melhor lhe aprovem.

O direito à liberdade, consagrado pela Constituição Federal, aliado ao crescente reconhecimento da importância dos direitos da personalidade, com destaque ao direito à privacidade e à intimidade validam esta interpretação dos direitos das famílias, pois nada é mais privado e mais íntimo do que a família, assim, se a família está na esfera do privado e da intimidade, natural que seus membros possam definir suas próprias regras de convivência e de patrimônio, bem como tenham autonomia para formalizarem as regras.


Evidentemente, é preciso fazer uma distinção entre relações conjugais e parentais, concedendo maior espaço naquelas relações, que envolvem adultos e capazes, e legitimando a necessária intervenção estatal nas relações parentais, na proteção do melhor interesse da criança, bem como das pessoas em estado de vulnerabilidade, tais como ocorre com idosos e mulheres vítimas de violência.


Na doutrina verifica-se um amplo e crescente reconhecimento da liberdade de estipulação das regras de convivência e de disposição do patrimônio no seio da família, razão pela qual o presente trabalho pretende analisar o posicionamento da jurisprudência, penúltimo patamar das mudanças do Direito e que antecede a mudança da legislação. Para tanto, serão analisadas as decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que envolvem contratos familiares, a fim de verificar quais as soluções conferidas pelo Tribunal.

 

1.              O DIREITO DE FAMÍLIA E A LIBERDADE DE CONTRATAR

 

A família sempre sofreu limitações impostas pelo Estado, e a proibição do divórcio é um exemplo disso. Todavia, a concepção da dignidade da pessoa humana como princípio basilar da Constituição Federal e do Código Civil abriu espaço para a família se concretizar como lugar de realização humana.


A Constituição Federal de 1988 foi fundamental para essa transformação, expandindo o conceito de Direito de Família e extinção de nomenclaturas pejorativas e discriminatórias entre os membros. Nesse sentido, inclusive, o projeto do novo Código Civil sugere que a melhor denominação para este campo do Direito é Direito das Famílias, abrangendo indefinidos formatos e modelos de organização familiar. .


Nesse cenário, para Rodrigues e Alvarenga (2021, p. 5), o elemento característico da família contemporânea é a presença de um vínculo afetivo que une as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, de modo que a afetividade é alçada ao patamar de valor jurídico, embrionário das relações familiares.


Para Maria Berenice Dias (2013, p. 58), esse modelo de família, pautado na afetividade, deu origem ao nome família eudemonista, que busca a felicidade e a satisfação de seus membros.


Evidentemente, essa nova visão da Família e do Direito de Família exige novas regras. Segundo Carvalho (2021, p. 19) as mudanças nos papéis dos membros da família, o aumento da expectativa de vida, rediscussão do gênero e redimensionamento da sexualidade fizeram com que o direito previsto na Lei já não seja mais suficiente para resolver as questões da família contemporânea, que demanda a construção de regras específicas para cada ciclo de vida familiar e suas expectativas.


E a mudança é inevitável, independentemente do diz a lei e da existência de maior ou menor resistência no direito de família pelos setores mais conservadores, seja do Estado, da religião e da própria sociedade, pois as pessoas vivem a família como querem e como conseguem. Muito antes da possibilidade do divórcio judicial, os casamentos já terminavam; antes da legalização do casamento homoafetivo, as pessoas homossexuais já viviam como casal; a regulamentação formal da adoção até hoje não consegue evitar que a adoção a brasileira continuem acontecendo. Outras situações previstas ou impedidas por leis não são capazes de evitar que, no seio familiar, as pessoas vivam ao seu modo e que muitas pessoas até desejassem viver de acordo com as regras tradicionais familiares, mas suas necessidades, suas possibilidades sociais e econômicas, muitas vezes lhes conduzem a vivenciar a família de um modo diverso.

 

2.              A AUTONOMIA DA VONTADE NAS ÁREAS SUJEITAS A NEGOCIAÇÃO

 

É importante destacar, todavia, que existem áreas sujeitas a negocialidade e outras imunes a ela. Acerca disso, Moraes e Teixeira (2021, p. 5) esclarecem que o conceito de negociabilidade pressupões simetria entre os membros da relação jurídica e que, a rigor, essas relações de paridade no interior da família podem ser vistas entre cônjuges e companheiros. Em contrapartida, nas relações assimétricas, pressupõe-se maior intervenção do Estado:

 

Quanto houver essa assimetria relacional, os espaços de negociabilidade ficam mais reduzidos, pois se espera um comportamento positivo de atuação em prol daquele que é vulnerável, a fim de que essa conduta possa reequilibrar a relação jurídica. Por isso, quando se tratar de criança, adolescente, idoso, pessoa com deficiência e mulher (em algumas circunstâncias), as relações familiares têm um vetor protetivo, pressupondo-se maior ingerência do Estado nesses espaços de intimidade (Moraes e Teixeira, 2021, p. 8).

 

Partindo desta distinção de relações existentes dentro da família, a discussão sobre liberdade de contratar aqui se limita àquelas áreas ditas sujeitas a negociação, em que o Estado deve ceder espaço às manifestações expressas pelas partes em condições de paridade, ou seja, relações conjugais estabelecidas entre pessoas maiores, capazes, que se unem por vínculos afetivos em igualdade de condições e de hierarquia.


Defende-se, portanto, uma intervenção mínima do Estado nas entidades familiares, dado o caráter instrumental da família, como meio para a realização pessoal e a felicidade humana, de modo que não se pode mais conceber uma família engessada no conservadorismo, sob pena de mitigação da autonomia privada (AMORIM, 2021, p. 8-9).


A forte intervenção do Estado nas relações familiares, limitando a auto regulamentação pelas famílias, contraria os princípios da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, inerentes à esfera privada, mas, por outro lado, não se pode ignorar seu caráter protetivo em relação aos membros da família que sejam hipossuficientes ou que vivam em situação de dependência e vulnerabilidade, física e econômica.

Acerca do tema, Multedo (2017, p. 273) destaca que “a desejada redução da intervenção estatal não significa recusar hipóteses excepcionais em que o Estado deve desempenhar um papel ativo de ingerência na seara da família” e que a liberdade decorrente da autonomia privada se curva à incidência da solidariedade familiar. Em outra palavras, a autora esclarece que ao sistema jurídico compete uma atuação vigilante, mas não interventora, respeitando a dignidade da pessoa humana na dimensão familiar, reconhecendo a liberdade e autonomia dos sujeitos, não intervindo nos aspectos que impliquem restrição injustificada.


Assim, a autonomia da vontade, princípio comumente relacionado na esfera do direito obrigacional, possui estreita ligação com a liberdade, alcançando inclusive o direito de família (Xavier, 2020, p. 79).


Segundo Xavier (2020, p. 76) o princípio da liberdade no direito de família, também chamado de princípio da não intervenção está consagrado no art. 1.513 do Código Civil Brasileiro, ratificado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, proibindo a interferência na vida familiar. Assim, seja na constituição, manutenção e extinção de uma entidade familiar, está presente o princípio da liberdade.


Multedo (2017, p. 56) observa que na trajetória do direito de família brasileiro há um movimento pendular da intervenção estatal, ora reconhecendo espaços da maior regulamentação, ora normatizando escolhas íntimas das pessoas, sem critérios e limites definidos. Como alternativa, a autora remete a teoria norte-americana denominada “paternalismo libertário”:

 

O paternalismo libertário é paternalista, na medida em que tenta influenciar os indivíduos a optar pelo arranjo que os interventores julgam ser a melhor opção do ponto de vista do bem-estar, e é também libertário, porque concede a esses mesmos indivíduos a possibilidade de recusa ao arranjo se assim desejarem, preservando assim a liberdade de escolha (MULTEDO, 2017, p. 64).

 

E um exemplo bem sucedido de aplicação do paternalismo libertário no Direito Brasileiro, apresentado pela autora, é a possibilidade de opção por regime de bens diverso da Comunhão Parcial através de pactos antenupciais, a fim de melhor atender os interesses e o bem estar do casal, assegurando o direito constitucional de liberdade (Multedo, 2017, p. 276).


Verifica-se, portanto, um lento e gradual processo de subjetivação das relações afetivas na sociedade brasileira, legitimando uma maneira particularizada de pensar as relações afetivas e de família, com uma liberdade jamais imaginada. A liberdade que se visualiza no campo da família, obviamente não é ilimitada, mas aponta para a contratualização plena das relações de família como sua próxima fronteira (CARVALHO, 2021, p. 29).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AMORIM, A. M. A. DE. A (des)necessária intervenção do Estado na autonomia familiar. Civilistica.com, v. 10, n. 2, p. 1-19, 18 set. 2021.


CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. Contratos familiares: Cada Família Pode Criar Seu Próprio Direito de Família. In: Contratos, família e sucessões: Diálogos Complementares / Alexandre Miranda Oliveira (et al.) coordenado por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renato de Lima Rodrigues. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 19-30.


DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.


MORAES, Maria Celina Bodin de.; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: Contratos, família e sucessões: Diálogos Complementares / Alexandre Miranda Oliveira (et al.) coordenado por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renato de Lima Rodrigues. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 1-18.


MULTEDO, Renata Vilela. LIBERDADE E FAMÍLIA. Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Rio de Janeiro, Processo, 2017.


RODRIGUES, E. E.; ALVARENGA, M. A. DE F. P. Novos tempos, novas famílias: da legitimidade para a afetividadeCivilistica.com, v. 10, n. 3, p. 1-23, 7 dez. 2021.

 

XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de Namoro: Amor Líquido e Direito de Família Mínimo. 2 ed. Belo Horizonte, Fórum, 2021.





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1 comentário


KEILA SCHONS
KEILA SCHONS
11 de mar.

Excelente artigo

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